Confesso que é um tema o qual eu tenho profunda adoração e acredito que seja esse o tipo de literatura que afaga o coração, que nos faz rir, chorar e principalmente, faz com que nós nos vejamos retratados naquelas poucas linhas.
Mas, o que é crônica? Como construir uma crônica?
Abaixo está o vídeo da professora Clóris Torquato refletindo sobre o gênero "crônica" e sua análise de alguns textos enviados à Olimpíada de Língua Portuguesa.
Assistam:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=UEQbIBeqEnI
Logo abaixo podemos ler uma crônica do Zuenir Ventura:
Um
idoso na fila do Detran
“O
senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na
porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal
"senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que
o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.
O jornal tem recebido muitas
cartas elogiando e outras criticando aquele departamento de tão má reputação.
Afinal, melhorou ou não o serviço? Cheguei a pensar em sugerir à editoria de
Cidade que mandasse fazer uma daquelas matérias em que o repórter desse o seu
testemunho. Simularia tirar uma carteira e assim desfaria as dúvidas.
Agora, ali, no posto da Gávea,
esperando a minha vez, eu me sentia fazendo as funções desse repórter, e tudo
começava bem. A operação toda não demorou nem meia hora e eu já ia aplaudir o
atendimento, quando, ao lado da boa notícia - aprovação no exame de vista - me
deram uma má: teria que ir à Avenida Presidente Vargas para pegar a carteira.
Foi assim que acabei assistindo
àquela confusão de que falei no início. Aliás, não só assisti como dela
participei: o “idoso” que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra
não era outro senão eu.
Até hoje não me refiz do choque,
eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a
maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “enta”; dos
50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha
que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a
gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que
houvesse uma outra passagem, um outro marco aos 65 anos. E, muito menos, nunca
achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa
fila do Detran.
Na hora, tive vontade de pedir à
tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe
dizer: “idoso é o senhor seu pai”. O que mais irritava era a ausência total de
hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe
garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E o
guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será
que era tão evidente assim?
Como além de idoso eu era um
recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso
que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá
furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um
pio.
O silêncio de aprovação
aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima - do
tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é uma
sacanagem comigo”, me disse, “eu não mereço”. Há poucos dias, ao revelar minha
idade, uma jovem universitária reagira assim: “Mas ninguém lhe dá isso”. Respondi que, em matéria de idade, o
triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um
gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran nem isso, nenhuma alma
caridosa para me “dar” um pouco menos.
Subi e a mocinha da mesa de
informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando:
“Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas”. Hesitei um pouco e ela, já
impaciente, perguntou: “o senhor não tem mais de 65 anos, não é idoso?”
- Não, sou gestante - tive
vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de
que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando:
“não tenho mais, tenho só 65 anos”.
O ridículo, a partir de uma
certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um
mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15”, já ouvi essa
discussão.
Enquanto espero ser chamado, vou
tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Aí, se não me
falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade - me
lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali
comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no
jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não
entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines,
Gullar, Francis, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos,
Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei
que devo estar cometendo injustiça com um ou outro - de ano, meses ou dias - e
eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.
Ah, sim, onde é que eu estava
mesmo? “No Detran”, diz uma voz. Ah, sim. “E o atendimento?” Ah, sim, está mais
civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas, mesmo sem entrar em fila, passa-se um
dia para renovar a carteira.
Por via das dúvidas, acho melhor
o jornal mandar um repórter não-idoso fazer a matéria.
(Crônica de
Zuenir Ventura publicada no Jornal do Brasil, 7/9/96.)
A crônica se relaciona com o nosso dia-a-dia! Está presente em situações pelas quais passamos em nossas vidas. A crônica do Ventura conversa com o vídeo abaixo do Comédia MTV:
http://www.youtube.com/watch?v=HAZGEQP_M0M&feature=player_embedded
Viram? Tudo o que fazemos, pensamos, pode resultar em um boa crônica.
Que tal começarmos a escrever?